quinta-feira, 22 de novembro de 2012

FORMAÇÃO E ATUAÇÃO DE TRADUTORES/INTÉRPRETES DE LÍNGUA DE SINAIS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA A PRÁTICA NO ENSINO SUPERIOR



Prof.ª Dr.ª Sandra Alves da Silva Santiago. Professora Adjunta do Centro de Educação. Departamento de Habilitações Pedagógicas. E-mail: sandraassantiago@yahoo.com.br

FORMAÇÃO E ATUAÇÃO DE TRADUTORES/INTÉRPRETES DE LÍNGUA DE SINAIS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA A PRÁTICA NO ENSINO SUPERIOR

Resumo

É consenso que os alunos surdos enfrentam muitos obstáculos, mas seu principal entrave é o uso de uma língua diferente: a língua de sinais. Neste contexto, emerge o papel do intérprete/tradutor de língua de sinais, como um dos principais agentes na superação dos limites impostos pela hegemonia ouvintista e pela acessibilidade de que a pessoa surda necessita para construir conhecimento na instituição escolar. Diante disto, a pesquisa traçou um perfil dos intérpretes que atuam no nível superior da UFPB, identificando titulação, proficiência, experiência e analisando a correlação com a área de atuação como elemento importante para um trabalho de qualidade.

Palavras-chave: Intérprete/tradutor. Formação. Ensino Superior.

Introdução

Do ponto de vista teórico, parece resolvido o debate sobre o direito de todos à educação. Documentos internacionais, como a Declaração de Salamanca (1994) e a Carta de Guatemala (1999), por exemplo, referendam tal premissa. Nestes instrumentos, o direito à educação é salvaguardado, independente das condições e necessidades dos sujeitos, portanto, variáveis como: etnia, classe, sexo, religião, deficiências ou diferenças não devem ser limitadoras desse direito.
Ainda seguindo o exemplo dos movimentos internacionais, no Brasil, os dispositivos legais – Constituição Federal (1988) e LDB 9.394 (1996) - também apontam na mesma direção. Além disto, pesquisadores da área há muito defendem a legitimidade deste direito e reivindicam mudanças que garantam o pleno atendimento de todos os alunos nas instituições escolares (SKLIAR, 1997; GOLDFELD, 2002; TESSARO, 2005).
Embora estejam resolvidos os impasses teóricos, do ponto de vista prático, a inclusão educacional tem muitos desafios. A década de 90 e, mais especificamente os primeiros anos do novo milênio, demonstraram a efervescência de pesquisas voltadas para a questão da inclusão educacional de grupos historicamente excluídos, e os resultados revelam, no caso brasileiro, o quanto tem sido desafiador este processo, principalmente para pessoas surdas e especificamente no ensino superior.
Mais recentemente, leis como a N.º 10.098 de 2000, que defende as principais ações relativas à acessibilidade; a Portaria 3.284 de 2003 que regulamenta a acessibilidade à Educação Superior ou a Lei 10.436 de 2002 que reconhece a Língua Brasileira de Sinais como meio legal para comunicação e expressão do surdo, reafirmam a intenção política em garantir a inclusão educacional e social de surdos\as. Mas, infelizmente, parece não ser ainda suficiente para garantir a inclusão (In: SANTIAGO, 2011). Urgente, é que todas as instâncias educacionais mobilizem esforços nesta direção, estimulando a criação de projetos na área e garantindo, no caso dos surdos, uma formação continuada dos intérpretes/tradutores de libras, já que não existe uma correlação entre formação e atuação profissional destes indivíduos.
É consenso que os alunos surdos, como os demais grupos marcados por diferenças, enfrentam muitos obstáculos durante seu processo de escolarização. No entanto, a situação do surdo se agrava porque estas dificuldades têm sua origem em questões de ordem linguística, ou seja, as limitações impostas ao surdo não atingem apenas o plano arquitetônico ou metodológico, mas, também o cultural, relacional, comunicativo e identitário. E, neste contexto, a formação do intérprete/tradutor assume papel fundamental, não podendo ser negligenciada, especialmente no ensino superior.
Apoiados em Skliar (1997:149), ressaltamos que o “completo acesso à informação curricular e cultural”, no caso dos surdos, só se realiza se garantirmos que os intérpretes possuam condições conceituais para realizar a atividade de tradução e interpretação dos conhecimentos veiculados no ensino superior. Esta condição é dada quando existe correlação entre a formação acadêmica do tradutor/intérprete e sua área de atuação. No entanto, na prática não temos esta condição garantida em todos os casos, com destaque especialmente para a escassez de profissionais intérpretes para atuação junto às ciências exatas. Nestes casos, defendemos a necessidade de que mesmo tendo que admitir a atuação profissional de interpretes/tradutores das ciências humanas nas disciplinas e cursos de outras áreas, a formação continuada destes indivíduos deve ser garantida pela instituição, a fim de que não se prejudique os alunos/as surdos/as.
Sendo assim, é claro que os obstáculos que alguns estudantes surdos vem enfrentando no ensino superior, não dizem respeito unicamente às diferenças e necessidades deles próprios, mas, às condições estruturais oferecidas aos surdos para garantir a acessibilidade. E, neste contexto, destacamos a formação continuada do intérprete/tradutor de libras como merecedora de ações efetivas para garantir qualidade e acessibilidade. E, destacamos que, embora seja este o profissional responsável, em última instância, pelo acesso ao conhecimento, se sua formação não lhe permite executar sua função com competência, ele pode inviabilizar a inclusão do surdo.

Método

É importante destacar que este estudo é parte do projeto de pesquisa que desenvolvemos na instituição desde o ingresso da primeira estudante surda em 2010.2, por isso, se configura apenas como um recorte de dois projetos já desenvolvidos junto aos estudantes surdos e que se intitulam respectivamente como: “Saberes Necessários para a inclusão de surdos/as no ensino superior” e “Mediação Pedagógica para alunos surdos no ensino superior”. Desse modo, a fim de traçar um perfil dos intérpretes que atuam no nível superior da UFPB – Universidade Federal da Paraíba -, identificando titulação, proficiência, experiência, área de atuação e qualidade da atividade, optou-se por realizar uma pesquisa explicativa, de campo e qualitativa.
De modo geral, a pesquisa se configura como explicativa porque segundo Gonsalves (2003), o objetivo da pesquisa é identificar a correlação de fatores na realização de um determinado fenômeno, ou seja, a formação dos intérpretes/tradutores e a atuação profissional dos mesmos, buscando a relação entre tais elementos e a qualidade da atividade desenvolvida. Junto aos intérpretes não foi feita pesquisa direta, os dados foram coletados a partir dos formulários preenchidos no processo seletivo para ingresso na instituição e acrescidos de elementos apresentados na entrevista. Junto aos estudantes surdos, os dados foram coletados a partir dos relatórios apresentados pelos estudantes surdos e pelos apoiadores, no “Projeto de Mediação Pedagógica”, e por entrevista semiestruturada concedida ao projeto “Saberes necessários para a inclusão de surdos/as no ensino superior”.
Ainda do ponto de vista da natureza dos dados, segundo Richardson (2009), ela esta é uma pesquisa que se configura em qualitativa, pois faz uma análise da qualidade, através da inferência das informações extraídas durante a coleta de dados realizada junto aos formulários preenchidos pelos 02 intérpretes de libras que atuam no CCEN e pelos relatórios produzidos pelos 12 apoiadores que atuam no CE e no CCEN. Além destes, acrescentam-se também como sujeitos da pesquisa: 03 estudantes surdos, sendo respectivamente 01 aluna do curso de Pedagogia, do CE - Centro de Educação, e 02 estudantes do CCEN - Centro de Ciências Exatas e da Natureza, sendo 01 aluna do curso de Ciências da Computação e 01 aluno do curso de Física.
Os dados coletados por meio dos instrumentos (formulário, relatório, entrevista) foram analisados com base nas seguintes categorias: titulação, proficiência, experiência, correlação com sua área de atuação e qualidade da atividade desenvolvida.

Resultado e Discussão

A UFPB foi criada em meados dos anos 70 e nunca antes contou com a presença de estudante surdo em seus diferentes cursos. É, somente, a partir de 2010 que tem início o processo inclusivo de surdos na instituição, sendo estes identificados desde o processo seletivo (PSS- processo seletivo seriado ou PSTV – processo seletivo de transferência voluntária) e acompanhados durante e após aprovação. Tal fato, por si só, já é bastante explicativo da inexistência formal de uma política inclusiva e de acessibilidade para surdos, bem como dos conflitos enfrentados hoje para que se garantam os direitos dos surdos. Ressalta-se, ainda, que as ações que se desenvolvem na atualidade, na UFPB, não nasceram de uma política inclusiva pré-definida e estruturada, mas, emergem das reivindicações dos respectivos estudantes e de grupos comprometidos com a questão e, por isso, se configuram mais em ações isoladas e desarticuladas do que numa política inclusiva.
Cabe destacar que a principal ação desenvolvida junto aos surdos com vistas à acessibilidade na UFPB é o projeto de “Mediação Pedagógica para alunos surdos no ensino superior”. Dentro deste projeto, destaca-se a presença de pelo menos dois agentes diretamente responsáveis pela acessibilidade e ambos com atividades ligadas a interpretação/tradução em libras. Para os efeitos deste estudo chamaremos de agente 1, o apoiador, e de agente 2, o intérprete. Neste estudo, analisaremos a formação e atuação de ambos para tecer considerações acerca do binômio formação/atuação do intérprete/tradutor de libras, pois eles realizam a atividade de interpretação/tradução, ainda que em perspectivas diferenciadas.
O agente 1 (APOIADOR) possui as seguintes funções: mediar as relações professor-aluno, gravar e transcrever as aulas e traduzir/interpretar informações essenciais durante as aulas e fora dela, garantindo acessibilidade aos surdos. O agente 2 (INTÉRPRETE) tem a função específica de traduzir/interpretar os conteúdos veiculados em sala, durante as aulas das diferentes disciplinas do curso, onde o aluno está matriculado.
Os apoiadores totalizam 12, sendo 05 atuantes no curso de Pedagogia, aqui identificados como apoiador A; 05 atuantes junto ao curso de Ciências da Computação, aqui identificados como apoiador B1 e B2; 02 atuantes junto ao curso de Física, identificados como apoiador C. Os intérpretes de libras totalizam 02, atuando especificamente junto ao curso de Física. A fim de que possamos discutir melhor a presença do intérprete/tradutor apresentamos o quadro a seguir com as categorias observadas durante a coleta de dados, a partir dos quais teceremos algumas considerações.

Quadro 1: CORRELAÇÃO FORMAÇÃO E ATUAÇÃO DO INTÉRPRETE DE LIBRAS

TIPO DE ATUAÇÃO DOS INTÉRPRETES
QUANTIDADE
ÁREA DE TITULAÇÃO
PROFICIÊNCIA
EXPERIÊNCIA
ATUAÇÃO
APOIADOR A
05
Humanas
Regular
Regular
Humanas
APOIADOR B1
02
Humanas
Regular
Regular
Exatas
APOIADOR B2
05
Exatas
Fraca
Fraca
Exatas
APOIADOR C
02
Exatas
Fraca
Fraca
Exatas
INTÉRPRETE
02
Humanas
Boa
Boa
Exatas
Fonte: Produzido pela autora a partir de pesquisa direta.

A análise do quadro foi apoiada nas informações contidas nos relatórios apresentados pelos estudantes surdos e pelos apoiadores, acrescidos de dados da entrevista. A fim de vislumbrar os resultados apresentados pelos estudantes surdos quanto ao desempenho dos agentes 1 e 2 apresentamos o quadro a seguir.

Quadro 2 – AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DOS INTÉRPRETES DE ACORDO COM O ESTUDANTE SURDO

AGENTES
AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO
Apoiador A
MUITO BOM
Apoiador B1
REGULAR
Apoiador B2 e C
 MUITO BOM
Intérprete
BOM
Fonte: produzido pela autora a partir de pesquisa direta.

Da análise dos dois quadros chegamos aos seguintes resultados:
ü  Os apoiadores do tipo A têm nível regular de proficiência e experiência em libras e uma correlação adequada entre a área de formação e atuação. Estes apoiadores, de acordo com a estudante atendida, realizam um trabalho muito bom e promovem a acessibilidade.
ü  Os apoiadores do tipo B1 possuem formação diferente da área de atuação e proficiência e experiência regulares. De acordo com informações da estudante surda do curso de Ciências da Computação, apresentam desempenho regular, não garantindo a acessibilidade plena da aluna nas atividades e conteúdos do curso.
ü  Os apoiadores do tipo B2 e C possuem formação equivalente com a área de atuação, mas proficiência e experiência em libras fracas. Ainda de acordo com a aluna surda do curso de Ciências da Computação apresentam desempenho muito bom com relação às ações inclusivas.
ü   Os intérpretes de libras não possuem formação correlata com a área de atuação, mas proficiência e experiência boa em libras. De acordo com o aluno assistido apresentam desempenho bom com relação à inclusão.

Tais considerações apontam para o fato de que a formação é, sem dúvida, um elemento decisivo na qualidade da atuação do tradutor/intérprete de libras no ensino superior, haja vista, que mesmo em detrimento do conhecimento em libras, os profissionais que atuam nas suas áreas de formação se saem melhor na avaliação dos alunos que os que atuam em áreas diferentes. Da mesma forma, boa proficiência em libras não tem sido suficiente para aumentar o desempenho do intérprete/tradutor, quando este atua numa área distinta da sua formação. Diante disto, fica claro que as instituições precisam se preocupar com a formação dos intérpretes/tradutores de libras, a fim de que não se comprometa o desenvolvimento acadêmico dos estudantes surdos no ensino superior.

Referências

BRASIL. Constituição Federal do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
_______. Declaração de Salamanca. Brasília: MEC/SEESP, 1994.
_______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB Nº 9.394. Brasília: MEC, 1996.
_______. Carta de Guatemala. Brasília: MEC/SEESP, 1999. Disponível em: www.mec.org. Acesso em 12 de março de 2012.
GOLDFELD, Márcia. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva sóciointeracionista. São Paulo: Plexus, 2002.
GONSALVES, E. P. Conversas sobre Iniciação a pesquisa científica. SP: Alínea, 2003.
SANTIAGO, Sandra A. S. A História da Exclusão das Pessoas com deficiência; aspectos históricos, educacionais e religiosos. João Pessoa: Editora Universitária, 2011.
RICHARDSON, R. J. Pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2009.
SKLIAR, Carlos (org.). Educação e Exclusão. Porto Alegre: Mediação, 1997.
TESSARO, Nilza S. Inclusão escolar: concepções de professores e alunos da educação regular e especial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

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